Impressões de um amapaense em São Carlos. Pt. 1: Os estudantes.
Há dois anos resido -
não continuamente, é verdade - na cidade de São Carlos, sendo esta a primeira
experiência em minha vida de realmente morar fora de minha cidade natal, apesar
de já haver conhecido vários outros lugares. Como não podia deixar de ser, a
vida em outro estado com pessoas de costumes diferentes, sotaques, hábitos,
ritmo de vida, maneiras de ser e de pensar diversos e distintos dos meus, me
causou grande impressão que considero bastante enriquecedora e sou grato a Deus
por isso.
O que quero relatar,
neste início de uma série de textos que pretendo publicar, são algumas
reflexões que desenvolvi sobre essa experiência, compilando o que considero
pontos positivos e negativos deste novo universo. Não podia deixar de começar
escrevendo sobre os estudantes, grupo ao qual pertenço nesta cidade, e que
conformam, indubitavelmente, o núcleo das atividades deste interior de São
Paulo centrado na existência de suas duas maiores instituições de ensino e
pesquisa: USP e UFSCAR.
Aqui, como em nenhum
lugar que eu já conheci, tudo gira em torno dos estudantes - apesar de já ter
ouvido falar que uma realidade muito semelhante ocorre em Santa Maria, no Rio
Grande do Sul. O comércio, a imensa rede de aluguéis e de hospedagem, os bares
e, até mesmo, as empresas sobrevivem da manutenção do estilo de vida
universitário e da mão de obra qualificada que sai dos grandes centros. São
Carlos, atualmente, é a cidade com maior número de pós-graduandos e de doutores
por metro quadrado da América Latina. Apesar de ser impressionante, esse número
ainda é baixo considerando a necessidade de mão de obra brasileira, limitando
apenas ao nosso país, mas toda a formação de pessoal no país não poderia mesmo
ficar a cargo de uma única cidade.
O primeiro fato curioso
que notei é a imensa quantidade de pessoas com mestrado e doutorado trabalhando
como caixas de supermercado, vendedores de roupas e calçados, frentistas ou
fazendo algum trabalho free lancer,
longe das indústrias, das academias e dos salários de (pelo menos) cinco mil
reais. Isto me fez pensar, a princípio, sobre a real problemática da ausência
de mão de obra qualificada no Brasil e do mal planejamento sobre a absorção
dessa mão de obra. O que o país oferece como oportunidade para quem se
qualifica? Será por isso que o "êxodo de cérebros" continua se
acentuando ano após ano? É uma questão difícil de responder, uma vez que
envolve campos complexos da economia, política, etc.
No entanto, a outra
questão que se levantou em minha mente ao me deparar com a realidade
supramencionada foi a seguinte: O que está levando as pessoas a procurarem
tanto realizar uma pós-graduação? Será a busca pelo conhecimento e o sonho de
estar próximo de um ambiente de investigação e pesquisa ou a incorporação
coletiva de uma mentalidade de "ser alguém na vida", a busca de
atingir um padrão estipulado socialmente, de percorrer o caminho
costumeiramente aceito como sendo a vida ideal de um cidadão (que em
geral também envolve, no aspecto familiar, casar e ter filhos), do qual se tem
medo de desviar-se? Por último, e como consequência da anterior: as pessoas
formadas nesta cidade estão mais felizes?
Concordo que o
conhecimento é um grande tesouro, que deve ser sempre buscado, e que o estudo é
uma dádiva que deve ser cultivada, praticada e ensinada, e que sem ela um povo
nunca deixará de ser rude e passará a ser civilizado. No entanto, observei que
este estudo não estava se convertendo, neste universo de jovens, numa postura
mais séria ante a vida, em argumentações mais sensatas e conscientes, em atitudes
renovadoras e de progresso tanto a nível individual como coletivo.
Aqui observei aquilo que
em minhas aulas de sociopolítica (no já longínquo 2010) se dizia como sendo o
"culto ao intelecto": a ilusão de acreditar que se você absorve e
nutre um corpo de conhecimentos sofisticados e especializados, isso te trará
realização, sucesso e felicidade. Culto esse, diga-se de passagem, muito
difundido na sociedade contemporânea, mesmo entre aqueles que não fazem questão
de se dedicar ao estudo. Faz falta aquele outro Conhecimento (com C maiúsculo)
que diz que tudo o que se aprende tem que ser colocado a serviço dos demais,
que o conhecimento deve ser útil, e que aquele que estuda deve primeiro
transformar a si mesmo, tornando-se o melhor exemplo daquilo que a sociedade
deve ser. Isso não se consegue, acredito eu, após 5 ou 10 anos na universidade,
mas apenas com a experiência, reflexão e orientação de alguém mais sábio.
Aproveitando o “gancho”
sobre a forma de vida dos estudantes, cabe relatar fatos que também entraram em
minhas reflexões e me parecem muito significativos. Um deles é a absurda
proliferação de bebidas pela cidade, o enorme número de fumantes, junto com o
consumo de drogas (a única da qual estive mais próximo em certas e
desagradáveis situações foi a maconha, mas ouvi muito sobre o consumo de outras
pela cidade). Como consomem álcool os estudantes em São Carlos! É comum
avistar um bar lotado em plena terça-feira, por exemplo. Sem falar das
costumeiras festas, churrascos e "rolês" regados a etanol nas
repúblicas que estão em todos os quarteirões. É quase uma loucura, mas a vida
que os estudantes encontram longe dos pais ou de quem quer que seja que lhes
imponha ordem é quase completamente sem limites. E tudo isso justificado pelo
"estilo de vida universitário", que creio ter sido absorvido dos
filmes norte-americanos em que se experimenta de todo tipo de excessos antes da
fase "séria" da vida, aquela em que se possui um emprego, casa-se e
tem filhos. É fácil ouvir que se você não se excede não está aproveitando a
vida. Eu, como aprendiz de filosofia, penso que aproveitar a vida é
utilizar as oportunidades de crescimento que ela oferece diariamente no lazer
ou na labuta para adquirir maturidade. Sem moralismos e julgamentos, apenas
creio que exceder-se o quanto puder na juventude não é uma "fase
essencial" da vida.
Nesta cidade também se
discute muito sobre suicídio, doenças de ordem psicológicas e há vários
profissionais preocupados com a saúde mental dos estudantes dentro e fora da
universidade. Essa realidade não é diferente da que se vê globalmente, mas no
universo acadêmico sofre um aumento expressivo. É comum encontrar alguém que
faz tratamento psiquiátrico, seja contra depressão, seja para diminuir a
ansiedade, stress ou transtorno de humor. O ponto positivo é que se fala
abertamente sobre o assunto, sem tabus, preconceitos e aquele antigo sentimento
de vergonha por parte de quem sofre o problema - que vi de perto há dois anos
em Macapá, quando também passei por algo parecido e conheci muitos que tinham
dilemas interiores muito piores que os meus. Não acho que se possa resolver um
problema ocultando-o dos críticos olhos da sociedade, mas sim trazendo-o à luz
da razão e do discernimento. Ao pensar sobre a possível causa deste problema,
faço uma relação com a ausência de um verdadeiro sentido de vida, fruto do
conhecimento profundo da vida, não intelectual, que eu mencionava dois
parágrafos atrás.
Antes de passar adiante
na reflexão, não posso deixar de comentar a problemática da (i-) responsabilidade
- termo mais aproximado que encontrei - que presenciei no contato com os demais
estudantes. Muitos são bolsistas, outros recebem ajuda financeira dos pais,
poucos têm algum trabalho ou fonte de renda à parte. É muito típico daqui
conhecer um "homem" de 30 anos que acorda às 11h da manhã, gasta
horas em jogos on-line e, quando
chega quinta-feira, já está precisando planejar o que vai fazer no fim de
semana para "relaxar". Me pergunto o que diria o meu pai ao ver essa
situação; ele que, entendendo necessidade de descanso de seus filhos, permitia
que meus irmãos e eu acordássemos no sábado às 7h30, pois precisávamos também
de um dia para dormir uma hora a mais. O que diria minha mãe sobre o chão
varrido somente a cada duas semanas, o banheiro lavado a cada 10 dias somente e
as panelas que nunca viram uma palha de aço? Bem, creio não ser mais necessário
gastar linhas nesse tópico para garantir sua compreensão.
Algo interessantíssimo
de São Carlos é a multiplicidade de pessoas de diferentes procedências inclusive
internacionais. Aqui se pode enriquecer muito sua visão de mundo apenas
conversando com as pessoas, pois praticamente metade dos estudantes com cerca
de 25 anos já visitaram o exterior, muitos são estrangeiros, e não se passa em
duas esquinas consecutivas sem que se ouça alguém falando um idioma estrangeiro
na rua. Há ruas inteiras com escolas de idiomas, além dos diversos cursos
gratuitos oferecidos nas universidades; há inúmeros programas de incentivo à
participação em eventos, com custeio, em outros Estados e no exterior - apesar
de estarmos em plena recessão na educação superior no Brasil, o que me levou ao
conhecimento de que já foram muito mais numerosos tais programas. Enfim, na
cidade se pode ampliar bastante a noção sobre o mundo, adquirir cultura. Basta
querer e aproveitar. Sabendo que posso incorrer numa comparação absurda, atrevo-me
a dizer que foi o mais próximo que já me senti (excetuando-se, obviamente, a
experiência em Nova Acrópole) de uma Alexandria do séc. II ou de uma Bagdá do
séc. X.
Por fim, encontrei muita
gente em São Carlos capaz de sonhar, de sorrir, de acreditar num futuro melhor
para o Brasil, ainda que de um jeito não totalmente correto, e, às vezes, contaminado
por ideologias, no meu ponto de vista, mais segregadoras do que unificadoras,
sobre as quais discorrerei num texto futuro. É uma cidade jovem, feita por
jovens e para os jovens, onde fiz muitos amigos que certamente me acrescentaram
algo de bom, pelas vivências que tivemos juntos e que para os quais espero
também tê-los agregado algo de bom.
Por: Gerson Anderson de Carvalho Lopes
Em: 10/07/2018
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