Meus diálogos com meu amigo Guilherme Duque
Conheci Guilherme Duque quando eu era um estudante de Física na Universidade Federal do Amapá. Naquele período em que eu estava na graduação, ele era recém concursado como técnico de laboratório. Alguém que se aproximasse do bloco de física na hora do intervalo, no meio da tarde, rapidamente o perceberia, pois, além do seu porte físico, ele também sempre foi de falar alto e bastante.
Naqueles anos o que ele mais
conversava conosco, os estudantes, era sobre como foi a prova que fez para
passar no concurso, como foi o processo de estudo que ele adotou, como foram as
disciplinas na sua graduação e algumas dicas que ele dava para os estudantes
sobre uma matéria ou outra.
Não lembro exatamente quando, mas a
partir de certo momento não o vimos mais por lá. Somente muitos anos no futuro
eu iria descobrir que ele havia sido questionado administrativamente sobre um suposto
acúmulo de cargos. Levou anos até que ele provasse que esteve agindo regularmente
o tempo todo, mas na ocasião, infelizmente, ele teve que deixar a UNIFAP.
Me formei e passei a lecionar
química na Escola Estadual Prof. Gabriel de Almeida Café. Por conta disso me
envolvi em atividades como reunião de sindicato, algumas manifestações,
gincanas com os alunos, jogos escolares etc., e em certo momento, encontrei
novamente Guilherme, já como colega de profissão, e falávamos muito sobre
nossas experiências, vivências escolares, entre outras. Mas esses encontros
eram esporádicos.
Dois anos nesse emprego e resolvi
mudar, passei a ser analista de laboratório de física na Universidade do Estado
do Amapá, e lá encontrei Guilherme novamente pois ele estava cursando
Engenharia de Produção. Ali o contato foi mais frequente e podíamos conversar
bastante, fosse no laboratório, no corredor ou na cantina.
Guilherme era inclinado a discutir
temas econômicos e políticos, coisas que eu não conheço bem, e ele sempre se
expressava de modo veemente, por vezes se exaltando com algo que considerava
errado ou injusto. Discordávamos muito nesse campo, pois eu o achava, por vezes
muito radical. Mas nunca deixamos de nos entender.
Mas no campo da educação
concordávamos quase sempre, principalmente quando, baseados na vivência de cada
um como professor, chegávamos à mútua constatação de que o nível de preparo dos
alunos tanto do ensino médio como da graduação decaiu com o tempo. Eu falava da
última década, que compreende meu tempo de formado; ele estendia essa
constatação a uma ou duas décadas mais atrás. Relatávamos situações ocorridas
em sala, coisas que alunos escreveram ou fatos envolvendo outros professores e,
no final disso tudo, procurávamos elencar possíveis soluções para os problemas.
Desenhamos ideias sobre um curso de
nivelamento para ingressantes nas engenharias, ou mesmo uma reforma do formato
dos TCC’s de licenciatura que, se muito tinham de ideológico, pouco tinham de
prático, acabando por ficarem engavetados. Pouco antes da pandemia de COVID-19
acontecer, estávamos discutindo sobre projetos educacionais que pretendíamos executar.
Nessa ocasião saiu o resultado do ENADE e a UEAP não apresentou, na maioria dos
cursos, um desempenho que se possa chamar de satisfatório. Um projeto muito
interessante foi o de resolver e comentar questões do ENADE de física de cada
ano, e a partir disso desenvolver um tipo de curso complementar na graduação
para os alunos prestarem o próximo exame, a exemplo do que algumas escolas
fazem com o ENEM, onde os alunos se familiarizam com o estilo de prova e podem,
assim, se saírem melhor.
Chegamos a resolver as primeiras
questões, discutíamos outras e então as atividades pararam. No novo momento,
todos tivemos que nos reinventar, e me pareceu que o Guilherme voltou novamente
suas atenções para a política, pois postava na internet uma série de críticas e
frases provocativas. Algumas vezes que conversamos ficou evidente que tínhamos
divergências. Mas quando mudávamos para o assunto ciência e ensino,
encontrávamos outra vez nosso ponto em comum. Ele orgulhoso mostrava a fotografia
da estação de trabalho que montou (e investiu pesado) para dar suas aulas
on-line, e eu sempre compartilhava com ele os novos vídeos que produzi
utilizando a minha nova mesa digitalizadora. Trocávamos boas ideias.
Dentre os diversos projetos envolvendo
engenharia, laboratório de física e outros que pensamos juntos, o que decidimos
tocar em frente primeiro foi o do livro de questões comentadas. Essa última
conversa foi em fevereiro. Agora em 2021, reuniríamos os esboços que tínhamos
até então e ampliaríamos o material, colocando-o no formato necessário.
Cerca de dez dias atrás, já próximo
de eu me mudar para cursar o doutorado, fiquei sabendo que ele se encontrava
internado no hospital São Camilo. Seus amigos da UEAP estavam fazendo uma campanha
para doação de sangue para ele. Eu imediatamente compartilhei e ajudei a
divulgar. Infelizmente não pude doar sangue pois já tinha realizado uma doação em
fevereiro. No dia 15 de março eu lhe enviei um áudio em que dizia que estava na
torcida pela recuperação dele, falava sobre a campanha de doação de sangue e
que tinha muita fé que ele ia sair dessa e estaríamos juntos novamente, executando
nossos projetos e discutindo novos. Meu celular está aqui ao meu lado agora
enquanto escrevo esse texto, com o whatsapp aberto na nossa conversa, e ele me
mostra que esse áudio o meu amigo, infelizmente, nunca escutou...
Ontem eu deixei o celular no silencioso
durante toda a tarde e início da noite, pois estava tentando me concentrar na
escrita de um artigo. Já era tarde quando me senti cansado e peguei o telefone para
falar com minha namorada, como faço todas as noites, e olhar as mensagens. Foi
aí que soube que meu companheiro de jornada, meu colega de profissão e parceiro
de projetos havia partido. A sensação que tomou conta de mim é indescritível.
Um tipo de congelamento, uma paralisação, mas ao mesmo tempo que te deixa
agitado por dentro. Eu olhei para a foto do meu amigo em tons de cinza e com
aquela cruz embaixo e uma tristeza enorme surgiu no meu peito.
Ele tinha o seu jeitão duro e
agressivo às vezes, o que lhe rendeu alguns desafetos ao longo da vida, é
verdade. Mas no campo profissional era muito comprometido, uma pessoa de valor como
poucas. Só o que consegui fazer foi postar uma mensagem de que eu iria sim
levar a cabo os projetos que iniciamos, terminarei nosso livro e nele vai
constar nosso nome como autores. Sinto no meu coração que devo fazer isso. E é
o que farei. Em sua memória meu amigo, em sua homenagem.
Gerson Anderson de Carvalho Lopes
São Carlos – SP, 22 de março de 2021.
Comentários
Postar um comentário